quinta-feira, março 08, 2007

A tragédia da emancipação da mulher

Excertos do ensaio “A tragédia da emancipação da mulher”, editado originalmente como parte do livro “Anarquismo e outros ensaios” de Emma Goldman

Começo com uma admissão: independentemente de todas as teorias econômicas e políticas, que tratam das diferenças fundamentais entre os vários grupos no interior da raça humana, independentemente das distinções de classe e de raça, independentemente de todas as linhas divisórias artificiais entre os direitos da mulher e do homem, sustento que há um ponto onde estas diferenças podem encontrar-se e crescer em um todo perfeito.

Isto não quer dizer que proponho um tratado de paz. O antagonismo social geral que se apoderou de toda a nossa vida social hoje,fez surgir através da força de interesses opostos e contraditórios, cairá em pedaços quando a reorganização da nossa vida social, baseada em princípios de justiça econômica, tiverem se tornado uma realidade.

Paz ou harmonia entre os sexos e os indivíduos não depende necessariamente em uma equalização de seres humanos, nem apela pela eliminação de traços e peculiaridades individuais. O problema que nos confronta hoje e o qual o futuro mais próximo deverá resolver, é o de como sermos nós mesmos e, ainda assim, em unicidade com os outros, sentir profundamente com todos os seres humanos e ainda manter nossas próprias qualidades características. Esta parece-me ser a base sobre a qual a massa e o indivíduo, o verdadeiro democrata e a verdadeira individualidade, homem e mulher, podem encontrar-se sem antagonismo e oposição. O lema não deveria ser: "perdoem uns aos outros", mas, antes, "compreendam uns aos outros". A frase de Madame de Stäel, freqüentemente citada, "compreender tudo significa perdoar tudo", nunca me apeteceu particularmente, tem o odor do confessionário. Perdoar o seu semelhante implica na idéia de uma superioridade farisaica. Compreender o seu semelhante já é o suficiente. Esta admissão representa em parte o aspecto fundamental da minha concepção da emancipação da mulher e do seu efeito sobre todo o sexo.

A emancipação deveria tornar possível para a mulher ser humana em seu sentido mais verdadeiro. Tudo dentro dela que anseia por afirmação e atividade deveria atingir sua expressão mais completa; todas as barreiras artificiais deveriam ser quebradas e o caminho para uma maior liberdade deveria ser limpo de todo e qualquer traço de séculos de submissão e escravidão.

Este era o objetivo original do movimento pela emancipação da mulher. Mas os resultados alcançados até aqui isolaram a mulher e roubaram-na da fontes daquela felicidade que é tão essencial para ela. A emancipação meramente externa tornou a mulher moderna um ser artificial, que nos faz lembrar dos produtos da arboricultura francesa com suas árvores e arbustos exóticos: pirâmides, rodas e coroas; qualquer forma exceto aquela que seria alcançada pela expressão das suas qualidades interiores. Plantas tão artificialmente cultivadas do sexo feminino encontram em grande número, especialmente na chamada esfera intelectual da nossa vida.

Liberdade e igualdade para a mulher! Que esperanças e aspirações estas palavras despertaram quando primeiro proferidas por algumas das almas mais nobres e corajosas daqueles dias. O sol em toda a sua luz e glória deveria levantar-se sobre um mundo novo; neste mundo a mulher deveria ser livre para orientar o seu próprio destino - um objetivo seguramente merecedor de grande entusiasmo, coragem, perseverança e esforço incessante do tremendo exército de homens e mulheres pioneiros, que arriscaram tudo contra um mundo de preconceito e ignorância.

Minhas esperanças também se movem em direção àquele objetivo, mas sustento que a emancipação da mulher, tal como é interpretada e aplicada de modo prático hoje, fracassou em atingir este grande objetivo. Agora, a mulher está confrontada com a necessidade de emancipar-se da emancipação, se ela realmente deseja ser livre. Isto pode parecer um paradoxo, mas é, não obstante, somente muito verdadeiro.

O que ela obteve da emancipação? Sufrágio igual em alguns estados. Acaso isso purificou a nossa vida política, como muitos bem-intencionados advogados desta causa previam? Claro que não. Notemos, de passagem, que já é hora para que pessoas de bom senso parem de falar de corrupção na política em um tom de colégio interno. A corrupção na política nada tem a ver com a moral, ou com a frouxidão moral, de diversas personalidades políticas. Sua causa é integralmente material. A política é o reflexo do mundo industrial e dos negócios, cujos lemas são: "tomar é mais abençoado que dar", "compre barato e venda caro", "uma mão suja lava a outra". Não há qualquer esperança de que a mulher, com seu direito de voto vá nunca purificar a política.

A emancipação trouxe a igualdade econômica da mulher com o homem, isto é, ela pode escolher a sua própria profissão ou empreendimento, mas como seu treinamento físico passado e presente não a aparelhou com a força necessária para competir com o homem, ela é freqüentemente obrigado a exaurir toda a sua energia, gastar a sua vitalidade e forçar cada nervo de modo a alcançar o valor de mercado. Muito poucas já o conseguiram, pois é um fato que as professoras, médicas, advogadas, arquitetas e engenheiras não são confrontadas com a mesma confiança que os seus colegas do sexo masculino, nem recebem remuneração igual. E aquelas que alcançam esta qualidade sedutora o conseguem, em geral, às custas do seu bem-estar físico e mental. Quanto à grande massa de mulheres e meninas trabalhadoras, quanta independência pode ser conquistada se a estreiteza e a falta de liberdade do lar é trocada pela estreiteza da fábrica, da oficina, da loja ou do escritório? A isto soma-se que a carga de cuidar de um "lar doce lar" - frio, sombrio, desarrumado, pouco convidativo - depois de um dia de trabalho duro. Gloriosa independência! Não admira que centenas de meninas estão desejosas de aceitar a primeira oferta de casamento, cansadas da sua "independência" atrás de um balcão, à máquina de costura ou à máquina de escrever. Estão tão prontas a casar quanto as moças de classe média, que anseiam libertar-se do jugo da supremacia paterna. Uma chamada independência que somente leva somente ao ganho do mero sustento não é tão sedutora, não é tão ideal que se poderia esperar que uma mulher sacrificasse tudo por ela. Nossa tão altamente louvada independência não é, afinal, mais que um lento processo de embrutecimento e sufocamento da natureza feminina, do seu instinto amoroso e do seu instinto maternal.

No entanto, a posição da operária é muito mais natural e humana do que a sua aparentemente mais bem favorecida irmã nas vias profissionais mais cultas da vida: professoras, médicas, advogadas, engenheiras etc. que têm que manter uma aparência mais digna e respeitável enquanto que vida interior torna-se mais e mais vazia e morta.

A estreiteza da concepção existente da independência e emancipação da mulher; o terror do amor por um homem que não é seu igual socialmente; o medo de que o amor lhe roubará da sua liberdade e independência; o horror de que o amor ou a alegria da maternidade somente obstaculizará o seu futuro exercício da sua profissão - todos estes fatos juntos fazem da mulher emancipada moderna uma vestal forçada, diante de quem a vida, com suas grandes esclarecedoras tristezas e suas profundas e extasiantes alegrias, vão em frente sem tocá-la ou se apossar da sua alma.

A emancipação, compreendida pela maioria dos seus aderentes e expoentes, é estreita demais para permitir o amor sem fronteiras e o êxtase contido na profunda emoção da verdadeira mulher, namorada, mãe, em liberdade.

A tragédia da mulher que se sustenta ou é economicamente livre não repousa em excessiva, mas em escassa experiência. É verdade que, se ela superar a sua irmã das gerações passadas em conhecimento do mundo e natureza humana, mas é justamente devido a isso que ela sente profundamente a falta da essência vital, a qual sozinha pode enriquecer a alma humana e, sem a qual a maioria das mulheres tornaram-se meros autômatos profissionais.

Que tal estado de coisas estava para vir foi previsto por aqueles que perceberam que, no domínio da ética, ainda permaneceram muitas ruínas em decomposição do tempo da autoridade indisputada do homem; ruínas que ainda são consideradas úteis. E, o que é mais importante, um bom número das emancipadas são incapazes de ir adiante sem elas. Cada movimento que objetiva a destruição das instituições existentes e a sua substituição por algo de mais avançado, mais perfeito, tem seguidores que, em teoria se posicionam por idéias mais radicais mas, que, no entanto, em sua prática diária, são como o filisteu médio, afetando respeitabilidade e clamando pela boa opinião dos seus oponentes. Há, por exemplo, socialista e mesmo anarquistas que defendem a idéia de que a propriedade é um roubo e, no entanto, indignar-se-ão se qualquer pessoa lhes ficar devendo o valor de meia dúzia de alfinetes.

O mesmo filisteu pode ser encontrado no movimento pela emancipação da mulher. Jornalistas marrons e literatos água com açúcar pintaram retratos da mulher emancipada que fazem os cabelos do bom cidadão e da sua embotada companheira ficarem em pé. Cada membro do movimento pelos direitos da mulher foi retratado como uma George Sand em seu absoluto desprezo pela moralidade. Nada era sagrado para ela. Ela não tinha respeito algum pela relação ideal entre homem e mulher. Em resumo, a emancipação defendia apenas uma vida desregrada de luxúria e pecado, sem consideração para a sociedade, religião e moralidade. O expoentes dos direitos da mulher ficaram muito indignados com tal falsificação e, carentes de senso de humor, empregaram toda a sua energia para provar que não eram de modo algum tão maus como foram pintados, mas exatamente o oposto.

Está claro que, enquanto a mulher foi a escrava do homem, ela poderia não ser boa e pura, mas agora que ela era livre e independente, ela deveria provar como poderia ser boa e que sua influência teria um efeito purificador sobre todas as instituições da sociedade. Verdade que o movimento pelo direito das mulheres quebrou muitos dos velhos grilhões, mas também forjou novos. O grande movimento de verdadeira emancipação ainda não encontrou uma grande raça de mulheres que podem olhar a liberdade face a face. Sua visão estreita e puritana baniu o homem como um ser problemático de caráter duvidoso da sua vida emocional. O homem não deveria ser tolerado exceto talvez como o pai de uma criança, uma vez que uma criança não pode vir ao sem um pai. Felizmente, até as mais rígidas puritanas nunca foram tão fortes a ponto de matar o anseio inato pela maternidade. Mas a liberdade da mulher está intimamente associada com a liberdade do homem (...)

O homem médio com a sua auto-suficiência, seu ridículo ar superior de proteção em relação ao sexo feminino, é uma impossibilidade para a mulher (...) Igualmente impossível para ela é o homem que não consegue ver nela mais que a sua mentalidade e seu gênio e que fracassa em despertar sua natureza de mulher.

(...)

A salvação está na marcha enérgica em direção de um futuro mais claro e mais luminoso. Necessitamos crescer, sem obstrução, superando as velhas tradições e hábitos. O movimento pela emancipação das mulheres deu até agora apenas o primeiro passo naquela direção. (...) A história nos mostra que toda classe oprimida conquistou a liberdade dos seus senhores através do seus esforços. É necessário que a mulher aprenda esta lição, que ela adquira a consciência de que a sua liberdade alcançará tão longe quanto o seu poder de atingir a liberdade alcance (...)

A mesquinhez separa, amplitude une. Sejamos amplas e grandes. (...) uma verdadeira concepção doa relação entre os sexos não admitirá conquistador e conquistado, ela não conhece senão uma coisa: dar de si mesmo sem limites, de modo a encontrar-se mais rica, mais profunda, melhor. Somente isso pode preencher o vazio e transformar a tragédia da emancipação feminina em alegria, alegrias sem limite.


O Individuo Na Sociedade
http://sorocaba-libertaria.port5.com/oindividuo.htm

La hipocresía del puritanismo y otros ensayos
http://www.antorcha.net/biblioteca_virtual/politica/hipocresia/caratula_hipo.html

What Is There in Anarchy for Woman?
http://sunsite.berkeley.edu/Goldman/Samples/whatis.html

Anarchist Emma Goldman (part 1)
http://www.youtube.com/watch?v=wFoMfoQSCh8

Anarchist Emma Goldman (part 2)
http://www.youtube.com/watch?v=DJgUZbneG0c

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